Compulsão s.f.
Imposição interna irresistível capaz de levar o indivíduo a realizar determinado ato ou comportar-se de determinada maneira.
É um diálogo com o irresistível. Impossível crer na vida sem o doce sabor da realização de lavar as mãos pela enésima vez para evitar a contaminação. Impensável não comprar aquela bolsa e ficar de fora do grupo. Indiscutível deixar de comer aqueles lanchinhos em um curto período de tempo. Não resisto, pois quando percebo já comi, já comprei, já fiz.
E então, ai de mim, Gabriela – que nasci assim, cresci assim e serei sempre assim. Diferente da obsessão, em que há o apego excessivo a uma ideia ou pensamento, a compulsão exige uma ação. Ação que afeta, atrapalha e impede, em certa medida, a realização das demais atividades.
“A pessoa realmente não consegue deixar de agir daquela forma porque acredita que terá um prejuízo muito grande em âmbito físico, psíquico ou social se não concretizar aquele ato. Ela pode começar acreditando que é uma mania inofensiva como verificar várias vezes se as portas da casa estão trancadas, por exemplo, mas em determinado momento esse hábito começa a atrapalhar a sua vida social e essa pessoa começa a chegar atrasada no trabalho porque ficou verifi cando se as portas estavam trancadas. Este é apenas um exemplo que pode valer também para casos de vigorexia, compulsão alimentar, compulsão por compras, por jogos, por drogas como álcool, entre outros”, aponta a psicóloga Sillvia Goulart da Silveira.
Questões socioculturais como hábitos e estilos de vida tendem a criar um ambiente propício para o desenvolvimento de transtornos de ansiedade e comportamentos compulsivos em indivíduos suscetíveis. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que o número de pessoas que têm problemas por comer demais já ultrapassou o número de pessoas que passam fome.
Organizações em prol da saúde na infância também já declararam dados semelhantes, demonstrando que a obesidade infantil já atingiu níveis alarmantes. De acordo com a nutricionista Raquel Aparecida Caregnato (CRN – 2574), estudos apontam que a compulsão alimentar ultrapassou os 5% da população mundial.
“Ela é caracterizada pelo ato de comer grandes quantidades de alimentos em intervalos curtos de tempo, pela sensação de perda de controle sobre o ato de comer e pelo arrependimento de ter comido”, explica.
Por ocorrer de forma cíclica, o compulsivo normalmente sente ansiedade ou tristeza como um gatilho para despertar o comportamento como uma forma de compensação imediata que eleva o sentimento de prazer no cérebro. Isto é válido para algumas compulsões como a alimentar e das compras.
Raquel explica que o desejo de comer e buscar alimentos nos foi garantido pela natureza através de uma grande e complexa rede de hormônios e neurotransmissores, que nos faz querer comer até atingir a saciedade nutricional das células.
Assim, naturalmente, os mecanismos de fome e saciedade auxiliam a garantir o acesso aos nutrientes, nos fazendo comer e parar naturalmente, sem sofrimento ou ansiedade.
“Mas, infelizmente, no ambiente artificial que criamos e onde vivemos atualmente, esses mecanismos são prejudicados, muitas vezes, especialmente quando os nutrientes não são ofertados de forma adequada. É o que os especialistas chamam de fome oculta, que nos faz comer compulsivamente, quase sem controle, sendo uma das principais causas da obesidade ou do excesso de gordura corporal. O açúcar também influencia diretamente na compulsão alimentar”, salienta.
No TOC, por sua vez, os comportamentos compulsivos são uma forma de lidar com pensamentos intrusivos, obsessivos, e que só tem alívio com a realização de um ritual que vai desde a busca de simetria, lavagem excessiva de mãos até comportamentos mais complexos, tomando muito tempo do indivíduo e trazendo inúmeros prejuízos pessoais.
Segundo o médico psiquiatra Vinícius Brum Prá (CRM/SC 18016 RQE 13386) praticamente todas as doenças mentais tem em sua origem diversos fatores, sejam ambientais ou genéticos.
“Estresse precoce, isto é, eventos adversos durante a infância (violência doméstica, privação de afeto, problemas sociais) podem impactar na regulação das emoções, tendo repercussões na vida adulta e aumentando o risco de desenvolvimento de transtornos mentais, como ansiedade, depressão ou abuso de substâncias”, explica.
Ao pensar em emoções, inicialmente devemos nos despir dos preconceitos e julgamentos. Sillvia esclarece que muitas compulsões têm origem na rejeição social e necessidade do indivíduo de se enquadrar em determinado grupo.
“Assim, o menino ou a menina que foi sempre cobrada pela família para se enquadrar em um padrão de beleza pode desenvolver uma compulsão alimentar por não conseguir perder peso, pode ter vigorexia ou ter compulsão por compras. Estes são exemplos muito claros para mostrar que os padrões sociais influenciam muito os nossos comportamentos, a ponto de fazer uma pessoa gastar todo seu dinheiro e ficar muito endividada na tentativa de comprar tudo o que um determinado grupo social possui para tentar se encaixar nele. Isso é muito sério!”, diz.
Mais do que sério, também é recorrente. Os dados brasileiros são semelhantes aos encontrados mundialmente, podendo atingir dezenas de milhões. Sillvia pontua que há uma dificuldade no diagnóstico precoce da compulsão por fatores como: a não aceitação do paciente, a falta de conhecimento da família e a progressão da doença.
“Uma compulsão pode começar ainda na infância através de tiques nervosos ou hábitos adquiridos que nós, como pais e mães, podemos não dar atenção. É o costume de olhar embaixo da cama para ver se tem bicho papão, sabe? Se a criança não olhar, não dorme e então ela cresce e precisa checar todas as portas e janelas, têm dificuldades de dormir, etc. É importante que a família preste atenção nos comportamentos de todos para conseguir mostrar ao indivíduo que existe uma doença que precisa ser tratada. Isso só é possível com muita observação e diálogo. Além disso, temos que entender que se a compulsão não for tratada ela pode progredir para outro alvo. Isso quer dizer que a pessoa pode ter uma compulsão por compras não tratada e começar a fazer uso excessivo de álcool ou drogas, ou então passa a ter uma compulsão sexual. Os exemplos são inúmeros e revelam uma face muito delicada e incompreendida da compulsão. Não é nada raro iniciarmos um tratamento e descobrir algumas compulsões associadas”, explica a psicóloga.
Já para Raquel, a compulsão alimentar pode ser gerada na primeira infância ou ao longo da vida até a fase adulta, tendo como características principais: ingerir uma quantidade excessiva de comida, mesmo sem fome; comer até se sentir desconfortavelmente cheio ou agoniado; comer escondido; comer muito rápido e sem controle; esconder comida; comer constantemente enquanto houver comida disponível; comer quando está sob pressão ou se sentir psicologicamente diminuído; expressar descontentamento com a aparência, peso e autoestima, sentir-se culpado após episódios em que comeu demais.
Para identificar a compulsão, além da observação ativa, vale apena não hesitar em buscar ajuda especializada. Na opinião de Vinícius, minimizar os riscos ou pensar que ‘é só uma fase’ ou que ‘logo passa’ pode implicar em agravamento do quadro, com piora dos sintomas.
“Normalmente, a resposta ao tratamento pode ser lenta. É crucial contar com o apoio e incentivo da família. As mudanças comportamentais lentas tendem a ser mais duradouras e efetivas, daí a importância do reforço de quem convive com o paciente”, aponta.
Entre todas essas compulsões que citamos ao longo da matéria, a mais bem estudada é o TOC, cujo tratamento pode envolver medicação e psicoterapia. Vinícius alerta que o tratamento medicamentoso do TOC demanda tempo e normalmente precisa de doses altas de antidepressivos, “mas a resposta ao tratamento tende a ser bastante satisfatória, com melhora significativa da qualidade de vida. Compulsões alimentares e por compras também podem ser tratadas com medicamentos, mas temos menos estudos sobre seus efeitos”. Terapias como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) têm mostrado bons resultados.
“Eu acredito na TCC, mas tive melhorias significativas com abordagens envolvendo toda a família do paciente. Casos de compulsão alimentar, geralmente escondem uma cobrança familiar pelo corpo perfeito e precisa ser tratada de tal forma que a família compreenda que está tudo bem caso a pessoa não se encaixe naquele padrão. De igual forma, a compulsão por compras precisa do conhecimento e compreensão de toda família para que possa ser resolvida corretamente. Felizmente já tivemos um grande avanço vencendo o preconceito sobre as compulsões, ou seja, as pessoas já compreenderam que precisam se tratar e enfrentam tudo com menos tabus. Eu acredito, no entanto, que ainda temos um longo caminho para avançar no desenvolvimento de uma cultura de terapia preventiva, onde seja possível tratar as compulsões antes que gerem grandes prejuízos físicos, psíquicos e emocionais”, finaliza Sillvia.
Compulsão Alimentar
A compulsão alimentar pode ser a manifestação de dois diferentes tipos de transtornos mentais: bulimia nervosa e o transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP). No primeiro, normalmente após episódios de comer compulsivo há uma resposta comportamental que tenta compensar a ingestão acentuada de calorias, quer seja através de purgação (indução de vômito), excesso de atividade física ou abuso de medicamentos (laxantes e diuréticos).
Assim, apesar da ingestão excessiva de alimentos, o peso tende a se manter dentro da normalidade, apesar de todo sofrimento envolvido. Já no TCAP, presente em até 30% dos obesos que buscam tratamento para emagrecimento, é mais comum haver sobrepeso e muitas tentativas frustradas de dietas.
O TCAP se caracteriza pela ingestão de grande quantidade de alimentos em um período relativamente curto de tempo, até sentir-se mais do que satisfeito, com posterior sentimento de culpa, muitas vezes comendo escondido.
Ambos os casos são mais comuns em mulheres, com prevalência estimada em 1,5 a 5% da população mundial para TCAP e de 1 a 3% das mulheres para a bulimia nervosa.
Compulsão por Compras
Pode atingir até 6% da população, segundo estudos norte-americanos, tendo prevalência maior entre as mulheres, apesar de um crescente número de casos entre os homens. Normalmente inicia no começo da vida adulta, com padrão de consumo recorrente e comprometimento cada vez maior. Em vez de comprar para suprir uma necessidade elementar de alimentação, vestuário ou lazer, a pessoa passa a consumir além de suas
possibilidades financeiras, mantendo um endividamento progressivo. Apesar de haver um alívio momentâneo da angústia após as compras, logo vem um sentimento de arrependimento e vergonha, dificultando a busca de ajuda dentro da família e de tratamento adequado.
TOC
O Transtorno Obsessivo Compulsivo normalmente se inicia no final da adolescência e início da vida adulta, tendo início mais precoce em adolescentes homens com histórico de tiques.
Está presente em até 2,5% da população em algum momento da vida. Normalmente, se inicia com pensamentos intrusivos – involuntários e recorrentes – associados à sensação de angústia. Estes pensamentos podem ser de contaminação, conferência, de conteúdo religioso ou erótico.
Para obter alívio do desconforto provocado por estes pensamentos, passam a ser realizados rituais como a lavagem de mãos, limpeza excessiva, conferência de portas, contagem e organização de objetos, o que em alguns casos pode ocupar a maior parte do dia da pessoa, interferindo no trabalho e nas relações interpessoais.
Não realizar o ritual pode provocar uma sensação de profundo desconforto, que obriga a pessoa a executá-los compulsivamente, obtendo alívio temporário a que logo se sucede uma nova necessidade de realizar um ritual.